Por Karl Jaspers
“Mas
como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas
universidades. Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da
tradição, a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de
desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece
de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas - existirá realmente?
Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.
A
oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a
compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto,
não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas
questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para
mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de
atividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e
contentar-se com elas.
A
polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a
filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida.
Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita,
teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
E
surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de
novo e totalmente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma
teologia falida. A insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a
filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e
outros.
Muitos
políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia.
Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas
tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os
homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como
algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais
vaidades se ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela
luz da filosofia.
Assim,
a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência
dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de
considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só
apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de
poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um
nome literário - tudo isto proclama a anti-filosofia. E os homens não o
percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem
inconscientes de que a anti-filosofia é uma filosofia, embora pervertida, que,
se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.
O
problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo
não quer. A filosofia é, portanto, perturbadora da paz.
E a
verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do
ser-verdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o
significado e substância da verdade única. Para nós, a verdade não é estática e
definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.
No
mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao
extremo, porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o
filósofo vê a verdade revelar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros
pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.
Quem
se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa
o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com
seus concidadãos, do destino comum da humanidade.
Eis
por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo
mesma.”
(Karl Jaspers, Introdução ao
pensamento filosófico, p. 138.)
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